“Embora pobre sempre serei um Bushi.”
- Miyamoto Musashi -
Mauri de CarvalhoProfessor de Judô 5º Dan, Professor de Educação Física. Mestre em Educação Física. Doutor em Filosofia e História da Educação. Professor Adjunto do Departamento de Desportos do Centro de Educação Física e Desportos da Universidade Federal do Espírito Santo – UFES.
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À ética coletiva a ética do indivíduo
A “fundação” no Ocidente das artes de combate, especificamente aquelas disseminadas em território japonês, trouxe consigo mecanismos ideológicos desenvolvidos sob o calão de relações pedagógicas e políticas autoritárias, colado às quais surgia um novo ideal de homem, obviamente, com um novo espectro de virtudes morais.
Eis que o individualismo é a característica fulcral e a substância moral não apenas da tradicional burguesia japonesa, mas de todas as sociedades calçadas na divisão social do trabalho e na exploração do homem pelo homem. O individualismo é o princípio individual independente das normas e dos interesses coletivos e sociais.
Portanto, se a moral samuráica preocupava-se com as condições de igualdade real entre os Bushi, a moral burguesa limitava-se e se limita a sancionar a igualdade formal entre os indivíduos, não se importando com a real e efetiva igualdade de condições sem as quais não há liberdade concreta, mas formal. A igualdade moral entre a burguesia nipônica e o operariado japonês era uma mera ilusão moral, posto que as qualidades e virtudes morais eram prerrogativas da burguesia, a nova classe social que passava a explorar a outra. O operário japonês era visto como um predestinado a sofrer as variegadas formas de privação, para o sumo bem dos Zaibatsu, pois o esperava a morte como meio de alcançar o ‘reino dos céus’.
A moral capitalista imperialista [e os nipônicos conhecem bem sua ira, só aplacada em Hiroshima e Nagazaki com algumas toneladas de material radioativo], moral escravocrata de cunho individualista, por sua própria natureza hipócrita e ambígua, oferecendo aos indivíduos todo um sistema casuístico de argumentos que justifica sua conduta baseada no cálculo egoísta.
Contrariando o Bushidô, código de ética de um coletivo determinado, a ética gerada com a “fundação” no Ocidente das artes japonesas de combate, procura impugnar as relações de classes estabelecidas durante a vigência do modo de produção feudal japonês, refugia-se em duas variantes dessa impugnação: o individualismo e o espiritualismo. A partir daí, é entronada a idéia da não conexão dos processos sociais e culturais com os interesses de classes, as artes de combate não teriam uma conexão lógica com as relações de poder da sociedade burguesa japonesa ou brasileira.
A tentativa individualista de impugnação / negação das classes sociais é mais uma artimanha para separar os indivíduos, indagar suas características e tendências pessoais para, em seguida, mediante uma simples desagregação / agregação, deduzir comportamentos supostamente coletivos. O individualismo metodológico como produto dessa impugnação, está associado a valores religiosos e morais criados por personagens confiáveis à classe feudal dominante ou ao imperador.
Na sociedade capitalista, o individualismo se relaciona de forma acochada com a burguesia e o Estado autoritário. Isto porque o individualismo, um dos pilares do modo de produção capitalista, do ponto de vista da economia e da filosofia política, ressurge como doutrina moral e política a valorizar não apenas a autonomia individual, como era de se esperar, mas o indivíduo e suas idiossincrasias em detrimento do coletivo, buscando a satisfação das suas inclinações “naturais”. O moderno individualismo é uma tendência política cujo principal argumento advoga a superioridade da liberdade individual em contraposição à ineficácia da ação coletiva.
Vale acrescentar, o individualismo, fundamento e substância do pensamento burguês hodierno, é assumido como contraposição à perspectiva marxista segundo a qual só coletivo é possível o desenvolvimento pleno dos indivíduos. No pensamento neoliberal o individualismo surge como perspectiva política na qual a liberdade individual deve prevalecer sobre a ditadura do coletivo. Parente próximo do pensamento neoliberal, o anarquismo aponta o individualismo como tendência intelectual que condena todas as formas organizadas de autoridade, por supostamente restringirem a soberania e a liberdade absoluta do indivíduo. O individualismo é a representação máxima da atitude de quem assumiu a total ausência de solidariedade e busca viver exclusivamente para si.
Os valores éticos propostos e praticados no Ocidente e que regram e regem a formação e o desenvolvimento dos adeptos das variegadas “artes de combate”, têm como pano de fundo o individualismo e não o coletivo, sendo, portanto, partes do processo de formação do homem capitalista, do pequeno burguês e dos personagens repressivos e ideológicos serventes e lacaios da classe dominante.
Se havia no Bushidô o sentimento e o sentido de coletivo (identidade de pensamento ação e objetivo), então, o individualismo é característica e substância moral da sociedade burguesa onde medram toscas e desavergonhadas formas de comportamentos individualistas: a ânsia pelo enriquecimento individual em detrimento do coletivo é a força motriz que move a contemporânea civilização capitalista.
Dessarte, Meiyô (honra samuráica), virtude intrínseca ao estatuto ético da casta guerreira japonesa, foi substituída na ‘Era Meiji’ pela virtude dos atos, intenções e êxitos nos negócios, independentemente da condição social. Quebrado o estatuto social e moral samuráico, o individualismo representa a base sobre a qual foi edificado o códex ‘ético’ da sociedade burguesa.
A moral burguesa oferece ao indivíduo, e não ao coletivo sempre ameaçador, um sistema casuístico de argumentos que justificam sua conduta baseada no cálculo egoísta. O individualismo representa um entrave ao peno desenvolvimento dos homens e mulheres trabalhadores. A rigor, ele produz as sementes da brutalidade egoísta que brotam no terreno profícuo da ‘livre concorrência’ e dão abundantes rebentos de amoralismo. Cresce e toma formas variadas a alienação.
A alienação dos indivíduos atinge proporções ou dimensões tão grotescas e oprime tão insuportavelmente a sua consciência que ao fim e ao cabo surge a necessidade de abafá-la de qualquer maneira. Não obstante, acorrem em sua ‘ajuda’ os meios de informação de massa [rádio, televisão, jornais, periódicos e livros] que sorrateiros modelam e determinam um estereótipo de homem e mulher: uma marionete com sentimentos morais atrofiados e egoísmo arraigado. O novo códex moral modela a chamada ‘moral de bando’ e impõe a lealdade aos interesses privados dos monopólios, das indústrias, das fábricas, dos latifúndios, etc., forçando homens e mulheres em geral a entrarem na competição exaustiva e desenfreada a fim de ganharem prestígio e elevar sua condição econômica e social.
A esfera moral capitalista gerou homens e mulheres moralmente insensíveis ou portadores de uma sensibilidade hipócrita, ‘indivíduos rotineiros’ com várias faces que se vangloriam do seu intrínseco amoralismo, da sua agressividade mórbida, do seu arrivismo exagerado, e esvaziados de qualquer sentido ético.
Incentivador para assumir o consumo suntuário (pomposo) e os ideais de uma vida de luxúria, divertida ou do ócio com dignidade, os indivíduos, notadamente os da classe dominante, são consumidores moralmente indiferentes aos reclamos do restante da sociedade. O fetiche da mercadoria ou fetichismo mercantil gerou e gera uma consciência estranha com um comportamento incontido de apropriação e de consumir por consumir.
A moral burguesa coloca todos os indivíduos no epicentro de uma crise de valores e ideais sem precedentes na história da humanidade. A irresponsabilidade política e moral e o princípio da ‘permissividade’ impune, decorrentes dessa nova moral, estimulam que a riqueza, o sucesso e o poder sejam almejados e, quiçá, alcançados por quaisquer meios. Por outro lado, a crise ideológica, política e moral instalada neste país vem corroendo sistematicamente e sem nenhum constrangimento as normas morais mais comezinhas e mais elementares sem as quais as mais modestas formas de convivência perdem o sentido humano e são demudadas em formas animalescas.
Sobre isto, vale um pequeno escólio, por normas [regras] entendo os preceitos que regulam um ou outro aspecto da conduta do indivíduo, do tipo: ‘dizer só a verdade’, ‘não levantar falso testemunho’, ‘não roubar’, não invejar’, etc..; enquanto por princípios entendo os preceitos morais gerais dos indivíduos que cimentam de uma ou outra forma na sua consciência as virtudes éticas num todo complexo: justiça, coletivismo, cooperação, solidariedade, patriotismo, etc..
As ilusões azuis da moral burguesa tomaram conta da consciência coletiva brutalizada pelas relações sociais capitalistas: a ‘racionalidade’ e o racionalismo da moral individualista representa o invólucro da essência egoísta e hipócrita do homem capitalista. Assim, envenenado pelo individualismo animalesco, o homem em seu próprio ‘eu’ moral, opondo-se aos outros homens e à sua própria essência social, submergiu no vazio existencial do ‘quietismo’ e do extemporâneo ‘estoicismo’. A imperturbabilidade alienada d’alma ou ataraxia parece ser o seu objetivo apoteótico.
Quietismo - estado de alma não suscetível de comoção ou interesse; apatia, indiferença forma de misticismo que sustenta poder a alma, conservando-se na mais total passividade de coração e de atitudes, atingir um estado contínuo de amor e de união com Deus.
Estoicismo é a doutrina filosófica fundada por Zenon de Cício (335-264 a.n.e), desenvolvida por várias gerações de filósofos, caracterizada por uma ética em que a ataraxia ou imperturbabilidade da alma, extirpação das paixões e a aceitação resignada do destino, são as marcas fundamentais do homem sábio, o único apto a experimentar a verdadeira felicidade. Vale dizer, o estoicismo é uma das correntes filosóficas da Grécia clássica que exerceram uma profunda e determinante influência sobre a religião e a ética cristã. O estoicismo pode ser entendido ainda como rigidez de princípios morais e resignação diante do sofrimento, da adversidade, do infortúnio.
Ataraxia, em linguagem filosófica, para os cépticos, epicuristas e estóicos, significa a mais completa ausência de perturbações ou inquietações da consciência, concretizando o ideal tão caro à filosofia helênica da tranqüila e serena felicidade obtida através do domínio ou da extinção de paixões, desejos e inclinações sensórias idiossincráticas. Pode ser também, qualquer sensação, fugaz ou permanente, de serenidade, tranqüilidade, calma. Ou ainda, nas sociedades modernas, o comportamento apático diante de estímulos internos; indiferença, grosso modo, estado obtido pelo mecanismo da alienação ou por intermedio de tranqüilizantes, entorpecentes e opiáceos.
Foto: Máuri de Carvalho e Mauricio Sabatini.